A primeira é através do nosso senso ético: histórias em que o bem triunfa sobre o mal, em que o mocinho fica com a mocinha, em que o sacrifício do herói é reconhecido, emfim, histórias em que nossa noção do que é certo e o que é errado é satisfeita pelo enredo de alguma maneira. Muitas narrativas são construídas de maneira a fazer você torcer pelo elemento que representa justiça ou o bem, colocá-lo em conflitos, dificuldades e no final fazê-lo triunfar, mesmo que por sacrifício. Elas servem, no fundo, para te dizer de algum modo: "todos passamos dificuldades, mas no final o bem sempre vence."
Porém, temos que lembrar que nosso senso ético e a realidade nem sempre são coerentes. Você pode até acreditar que pessoas boas são recompensadas e pessoas más são castigadas, mas sabe que no mundo real nem sempre é assim. Você sabe, independente de seus códigos, que no mundo há injustiças, que as coisas nem sempre correm como planejado e que o destino das pessoas nem sempre está em total concordância com o seu valor. Pode até ser que você justifique as injustiças com filosofias de julgamento pós-morte, mas ainda sim estará admitindo que "como este mundo é inegavelmente injusto, a justiça ocorre num outro mundo que não este".
E é aí que vem a segunda maneira pela qual uma narrativa nos prende ou nos fascina: a verossimilhança.
As histórias em que o bem e o mal estão claramente definidos e entram em conflito direto e objetivo apelam para a nossa necessidade de ver justiça sendo feita, apelam para a empatia que construímos com os heróis com os quais nos identificamos e nos dão a sensação de que "nós vencemos", os valores nos quais acreditamos prevaleceram. Mas o mundo real não é assim, e as histórias verossímeis nos chamam a atenção exatamente por causa disso, porque desafiam a nossa noção de certo/errado nos colocando em luta contra a realidade.
Game of Thrones elevou a fantasia medieval á um outro nível não por causa da riqueza do mundo em si, muitos ainda atribuem á Tolkien a medalha de ouro no quesito "riqueza de cenário". George Martin conquistou seu lugar entre os melhores por causa da verossimilhança com a qual os personagens interagem com o mundo por ele criado. Não existe em nenhum momento da narrativa, o compromisso de satisfazer suas noções pessoais de justiça. É um mundo caótico, onde há brigas por poder, traições, mentiras e injustiças, assim como o nosso. Nenhum personagem é completamente bom, mau ou neutro, eles apenas seguem seus interesses e agem da maneira que a vida de cada um os ensinou a agir, exatamente como no mundo real.
Na verdade, por vezes é fácil esquecer que se está lendo fantasia quando se observa o mundo de George Martin, tão real e complexa é maneira com a qual os personagens reagem uns aos outros. Há uma tensão adicional no enredo quando você começa a perceber que tudo pode acontecer, que ninguém está protegido por moral, seja ela qual for. Um dos maiores pecados dos escritores e deixar sua moral pessoal impregnada no livro de maneira óbvia, por exemplo: um escritor que acredite que as pessoas deveriam ir para a igreja pode acabar fazendo com que todos os personagens de seu livro que vão para a igreja sejam afortunados com histórias e finais felizes, enquanto os que não vão sempre vão se dar mal. Quando o leitor percebe um padrão moral na narrativa, ela fica previsível, e se uma narrativa é previsível, perde-se parte do interesse, mesmo que o leitor concorde com a moral colocada no livro. O leitor que desvenda o padrão moral da narrativa prevê com facilidade o desfecho de qualquer personagem nela contida.
E nas Crônicas de Gelo e Fogo, há momentos em que podemos jurar que o autor quer passar a mensagem de que você deve ser um mentiroso maquiavélico e manipulador se quiser ser alguém na vida, mas como ele mesmo não poupa personagens com essas características, ficamos no escuro, tentando saber o que acontecerá em seguida, qual será o próximo passo. Ao invés de adotar um padrão moral, Martin parece colocar inúmeras morais diferentes em conflito, sem deixar nenhuma delas prevalecer durante tempo demais. E assim o autor brinca com nossos sentimentos, constrói e destrói esperanças e conceitos a medida que o livro avança, satisfaz nossa necessidade de justiça aqui, e a ignora ali, tudo para manter um nível perfeito de equilíbrio entre opostos: ordem e caos, esperança e desespero, "gelo e fogo".